quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Brilho da Lágrima Parte 9 – Samuel Rocha

Reveja a Parte 8

9

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Poucos dias passaram depois da visita ao
cemitério. Susana continuava preocupada. Já
tinha tentado entrar em contacto com
Salvador, mas o telemóvel estava sempre
desligado. Onde estariam eles?
Não foi necessário esperar muito para que
as suas dúvidas fossem satisfeitas.
- Susana, esta carta é para ti. – dizia Cíntia,
ao mesmo tempo que estendia a mão à sua
filha.
Susana foi para o quarto. Ansiosa, nem


reparou que o envelope estava semi-aberto.
Apenas quis deitar-se, abri-lo e começar a ler.
«Não sei por onde começar. A minha vida
está um completo caos. Não digo isto para te
preocupar. Digo-o apenas para acalmar o meu
coração, porque «um caos» é simples demais
para descrever o que sinto e o que estou a
viver.
Eu tenho um irmão, uma mãe e um pai.
Parece a família ideal. Não o é... nem nunca o
foi. Isto é uma farsa que só mata o meu
interior. Já não consigo olhar para o céu e
agradecer pela saúde que tenho. Já não tenho
coragem para o fazer. É como se me tivesse
revoltado contra o mundo. A minha mente
quer governar-me. Aliás, ela já o conseguiu,
porque não sou eu quem te escreve neste
preciso momento; é ela! Eu sou apenas o
amuleto, um utensílio. Eu não sou nada, por
conseguinte.
Tu és o que me salva nestes momentos. É
em ti que penso quando as lágrimas tentam
invadir a minha face. É em ti que penso
quando aquele pensamento hediondo me
consegue afastar de mim mesmo, aquele
pensamento de como tudo se passou:
Ele tentava agarrá-la e sorria enquanto o
fazia. Sentia prazer por colocar as mãos na
pessoa com quem casou. Ele ria-se enquanto
ela ia tentando desembaraçar-se dos seus
braços e punhos fortes e frios. Ela pensava
em mim e no meu irmão, como sempre fez. A
certeza de que ia morrer era evidente no seu
olhar. Ao mesmo tempo que o corpo dele ia
ferindo o dela, ela procurava um ponto de
refúgio para respirar o ar que nunca antes
tinha respirado. Se o fizesse, seria a primeira
vez que teria a possibilidade de tal proeza. E
conseguiu...
Eu não vi nada... mas foi desta forma que
tudo aconteceu.
Estamos algures nesta Terra infinita,
escondidos do Sol e da Lua. Não podemos
sequer abrir o coração e viver a vida que
alguém nos deu, de mão beijada. Ele também
nos tirou isso.
Não é justo!
Adeus Susana... Um dia, encontrar-te-ei! Se
a vida acabar entretanto, fica sabendo que lá
bem no fundo, és feliz por seres quem és e
não pelo que os outros te obrigam a fazer
para sobreviveres! Até sempre!
Salvador»
Após ter lido a carta, Susana apenas a
colocou dentro do envelope e, no momento
em que o fazia, reparou que o mesmo não
vinha fechado. Foi fácil deduzir que tinha sido
Salvador quem pôs a mesma carta na caixa de
correio. Porventura, isso era sinal de liberdade.
Susana estava agora sentada na cama, de
olhar virado para a paisagem. Repentinamente,
Cíntia abriu a porta.
- Filha, está aqui a Natacha.
Natacha inclinou a cabeça para que a amiga
a conseguisse ver. Deu um leve sorriso, apenas
como um antibiótico à sua inconsciência dos
últimos tempos para com a sua suposta
melhor amiga.
- Entra. – disse Susana, sem esboçar
qualquer surpresa.
Natacha dirigiu-se até à cama e sentou-se
na mesma, apoiando a sua mão nos lençóis
cor-de-laranja.
- Desculpa! – disse friamente.
Susana, ainda a olhar o envelope, fingiu
sorrir subtilmente.
- O facto de eu ter ido de férias, não
significa que tenha de te ignorar por
completo, sobretudo na forma como tu
ficaste depois da nossa conversa na Quinta.
- Não te preocupes com isso.
Natacha não prestava atenção à forma
como Susana aparentava escutá-la.
- De qualquer forma, o que importa é que
já estou cá para te ajudar no que precisares.
Tenho vindo a questionar-me se já decidiste ir
ver o teu filho. Já foste?
Alguns segundos de silêncio passaram. Só
aí é que se percebeu que as duas não estavam
no mesmo mundo: uma de viagem pelo
horizonte da saudade e a outra tentando
remediar um erro sem nexo ou razão.
Finalmente, Susana fez uso da palavra:
- Quando tu foste embora, eu tomei a
decisão de ir ver o Martim. Acontece que fui
tarde demais. Ele teve leucemia e faleceu.
Natacha olhava fixamente a amiga,
boquiaberta com o que acabava de ouvir.
Naquele momento, era óbvio sentir-se
culpada por não lá ter estado quando a amiga
precisou.
As duas falaram durante toda a manhã.
Natacha estava morta de sufoco. Ninguém
esperaria ouvir tantos desastres num tão
curto espaço de tempo.
Lá fora, o tempo passava como sempre o
faz. Sentia-se uma leve brisa, escura como a
noite, fria como o amor. Apenas os ponteiros
do relógio faziam pensar que a Terra, ainda
móvel, não tinha parado instantaneamente.
De lá do céu, Nuno ia tentando proteger a sua
filha, aquela que nunca quis magoar. Só ele
sabia o quão é difícil viver duas vidas paralelas
uma à outra. Só ele sabia que o dinheiro não
compra a felicidade. Houve apenas um
problema no meio de todo este saber: foi
descobri-lo tarde demais.
Chegara o último sábado do mês de
Agosto. Numa manhã solarenga, os raios de
Sol que tentavam entrar no quarto através
dos estores fizeram com que Susana
acordasse mais cedo do que o previsto. Eram
precisamente oito e meia da manhã. O abrir
dos olhos foi um esforço horrendo. A sua
mente estava pesada, mas o olhar não.
Quando se levantou para abrir a janela, sentiu
que tinha de sair para se colocar no meio do
universo, apenas ela.
Quinze minutos depois de caminhar até
onde o corpo a levasse, parou subitamente
numa estrada deserta. Ela não sabia onde
estava e o que lá estava a fazer. Decidiu
então voltar para trás, sem no entanto
conhecer o caminho de volta. De repente,
parou um carro ao seu lado. O vidro desceu.
- Bom dia! – disse entusiasticamente o
homem que lá se encontrava.
O interior do carro emanava um enorme
cheiro a álcool. Susana tapou o nariz com a
mão e, continuando a caminhar, disse:
- Bom dia.
O mesmo homem não hesitou em
continuar a conversa.
- Esta rua está muito «quieta» em relação
ao que costumava ser. Antes, existiam aqui
muitas meninas bonitas com quem podíamos
conversar. Agora, sempre que por aqui passo,
não há ninguém.
Rapidamente Susana entendeu que tinha
de correr para não correr riscos
desnecessários. Contrariamente ao seu
pensamento, continuou a caminhar. Porém, o
carro seguia-a.
- Onde vais? Sabias que passei a noite num
bar aqui perto? Estive com umas amigas
minhas. Divertimo-nos muito. Sabes que mais?
Acho que não me diverti o suficiente. E que
tal se...
- Olhe bem para mim, seu estafermo! –
ordenou Susana, assertivamente – Se você
pensa que me vai tocar, pode seguir viagem. Eu
não o conheço, por isso deixe-me em paz!
O homem fingiu não ouvi-la e pegou na
única coisa que estava sobre os bancos de
trás... a pistola.
- Isto é muito simples. Tu vais entrar no
carro e nós vamos, como te disse antes,
divertir-nos.
Susana pensou correr, mas não o fez. O
tempo parara para ela quando vira a arma
apontada à sua cabeça. Apenas lhe passava
uma coisa pela mente: a violação.
Ainda no mesmo sábado, a campainha
tocara antes do Sol se pôr. Cíntia, já bastante
preocupada com a sua filha, abriu a porta e viu
um indivíduo muito estranho atrás do portão.
O sujeito tirou o chapéu e acenou com a
cabeça. Tinha um sorriso simples, mas Cíntia
não hesitou em questioná-lo.
- Boa noite! O senhor precisa de alguma
coisa?
- Boa noite! Eu venho entregar-lhe uma
carta. Ao que parece, é muito importante.
Não hesite. Leia-a!
- Uma carta? – perguntou, ao mesmo
tempo em que descia as escadas em direcção
ao portão.
O homem indicou que sim com a cabeça e
depressa tentou escapar.
- Bom, tenho mesmo de ir. Passe uma boa
noite! Adeus. – disse, enquanto virava costas.
Cíntia pegou na carta, olhou para ela... e
caiu na escuridão do cimento. O vento
tornava-se cada vez mais forte e os seus
cabelos esvoaçavam. Ela mantinha-se ali,
quieta. O pedaço de papel, rasgado nos
cantos, continha apenas uma frase: «A Susana
está morta!».

continua…

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Parte 1 e Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

Parte 6

Parte 7

Parte 8

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