quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O Brilho da Lágrima Parte 4 – Samuel Rocha

 

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Agosto é mês de Verão. Esperava-se então
que o Sol brilhasse, nem que por alguns dias.
Três semanas após o funeral de Nuno, o calor
começou finalmente a aparecer, e de vez.
Contudo, das poucas vezes que saía à rua,
Susana não via tanta gente como nos dois
anos anteriores.
Em relação aos resultados da autópsia,
estranhava-se a demora. «Com o tempo, os
resultados irão aparecer». Era assim que
pensavam mãe e filha, um tanto ansiosas.
Para atenuar o sofrimento, Susana tinha
um forte alicerce, para além de Cíntia.

Era
Natacha, uma «miúda» simples, de classe
média, que gostava do mesmo tipo de
sensibilidade que a sua melhor amiga. Ambas
tinham a certeza de que a força das duas ia
ajudá-las em todos os momentos difíceis.
Numa quinta-feira de altas temperaturas,
Susana não tinha vontade de sair, apesar do
incentivo da mãe. Estava em casa, sozinha e
sem nada para fazer. Era assim que o
reaparecimento da tristeza a deixava.
Resolveu pegar no telemóvel e telefonar a
quem a pudesse ouvir, a Natacha. O membro
mais novo dos Félix sabia que a tarde iria ser
vantajosa. Ela estava disposta a contar o que
lhe ia na alma, nem que isso fosse o segredo
mais bem guardado que tivesse.
Quando se cumprimentaram, juntas foram
passear pela bela Quinta da Pedra. A cor de
Verão começava agora a reaparecer. A dada
altura, sentaram-se sobre duas pedras
enormes que faziam de assento.
Como até aí a conversa tinha sido
rotineira, Natacha quis saber o que ia na
cabeça de Susana. Mais directa não poderia
ter sido:
- O que tens?
- Hoje acordei assim. Estou sempre a
pensar no passado. Estou farta do passado
que tenho. O problema é que não me posso
livrar dele.
- Estou confusa. – rematava Natacha – Que
passado? Nunca te abriste comigo ao longo
de todo este tempo.
Susana hesitou. Era difícil falar do que
sofrera; era muito delicado tocar nessa
«ponta» mal limada.
- Há muitas complicações sobre mim que
ninguém sabe. Nunca tive coragem para contá-las.
- Estás a deixar-me preocupada. Conta-me
tudo... se te sentires à vontade.
- De qualquer maneira, não posso suportar
tudo isto sozinha.
Depois de ter confessado que não era tão
forte quanto aparentava, engoliu a saliva que
lhe restava e abriu o coração... já repleta de
lágrimas.
- Como já deves saber, eu vim de Beja para
aqui.
- Eu sei. Só não sei é a razão para tal ter
acontecido.
- Pois não. Quase ninguém sabe.
Com soluçares contínuos, ia continuando,
ainda que dificilmente.
- Em Janeiro de 2004, ainda com 15 anos,
fui transferida da escola secundária que tinha
escolhido para uma outra. Simplesmente não
conseguia lá estar. Eu fazia de tudo para que
gostassem de mim, mas a minha ingenuidade
levava-me sempre por maus caminhos.
Quando conversei com os meus pais, eles
acharam a situação muito estranha, porque
nunca me tinha acontecido nada igual.
- Com essa idade, ainda eras assim tão
ingénua?
- Sim. Sempre tive tudo. Nunca me tive de
preocupar com a «vida lá fora», entendes?
- Sim... Vá, acalma-te... e continua.
- Bom, quando me mudei, já levava na
bagagem alguma experiência e, em tão pouco
tempo, pensava que tinha aprendido imenso.
Gostei muito da escola e dos novos colegas.
Naquela altura, senti-me tão bem que tive de
libertar-me e aprender a lidar com todos, sem
me envergonhar ou ridicularizar. Tornei-me
mais consciente e «sóbria».
- Mas isso é bom...
- Pois, mas mal sabia eu o que estava para
me acontecer. No dia 24 de Janeiro, recebi
uma mensagem de um número desconhecido.
Dizia: «Às cinco em ponto, espera no portão
da entrada. Tens mesmo de lá estar. Beijos».
Quando a li, fiquei preocupada. Claro que não
a mostrei a ninguém, visto que ainda não
conhecia bem toda a gente. Quem me enviou
a mensagem sabia exactamente o meu
horário...
- Quem foi? – interrompeu Natacha.
Susana estava mais calma do que no início.
No entanto, cada vez se tornava mais difícil
com o passar da história.
- Às cinco da tarde, esperei uns dez
minutos em frente à escola, mas ninguém
apareceu. Sinceramente, não quis saber e fui
para casa.
Natacha olhava a amiga nos olhos, com
uma ternura de quem já sabia o que se tinha
passado.
Agora sim, as lágrimas de Susana
intensificavam-se... Chegava o momento
fulcral.
- No caminho para casa, parou um carro ao
meu lado. Era o director da escola. Saiu do
carro muito calmamente e dirigiu-se a mim.
Quando olhou à volta, eu quis fugir. Mas ele
foi mais forte, agarrou-me e pôs-me no carro,
amarrando-me as mãos.
- Estou a arrepiar-me toda! Agora percebo
essas lágrimas... Mas ele fez-te mal? Raptou-te?
- Ele entrou no carro e trancou as portas.
Eu tentava gritar, mas ele também me tinha
tapado a boca. Quando vi que ele ia levar-me
para um sítio sem ninguém, aterrorizei. Tentei
mexer-me e pontapear o vidro. Tentei fazer
alguma coisa... Foi em vão.
- Estás a deixar-me assustada.
Natacha segurou a mão de Susana, como
se de algo precioso se tratasse. Esta fez uma
pausa, mas quis continuar.
- Entretanto, ele parou o carro e pôs-me
no banco de trás. Mais uma vez, tentei reagir.
Ele não me largou. Foi aí que me disse «Agora
é que vais apreciar a tua mudança de escola.
Vais adorar o que tenho para ti!».
Susana só via o olhar incrédulo da sua
amiga. Já ela... não sentia a alma.
- Naquele instante, eu olhava para ele com
desprezo. Parecia um anormal. Sabes o que
fez ele a seguir?! – perguntava, sem intenção
de obter resposta, mas para se conter.
- Não faço a menor ideia.
- Ele tirou-me a fita da boca e... e tirou...
tirou a roupa. Aquele demente violou-me com
unhas e dentes, dentro do próprio carro!
Aquele estupor enterrou-me o coração! Ele
queria ouvir-me gritar! Aquele maníaco fez-me
sentir suja!
A sedição era enorme. Agora também
Natacha chorava desalmadamente... Não tinha
o que dizer. Era de facto inexplicável.
- Eu... eu não sei o que te deva dizer. Estou
aqui em apuros ao ouvir-te. Tu sim, deves
estar a desesperar, sobretudo se guardaste
isto durante três anos.
Ali, o Sol secou as lágrimas de um passado
distante, mas tão próximo. A mágoa
continuava viva. Susana também, mas a sua
vida mudara.
- Agora entendo toda a tua reserva. Eu não
sei mesmo o que dizer. Aquele homem não
podia ter feito isso. Aliás, ninguém tem o
direito de estragar o futuro a alguém
inocente, que não tem contas para acertar
com a vida. Cobardes são os que não pensam
nos seus actos, por mais mórbidos que sejam.
Ele foi cobarde.
- Foi mais que cobarde. O pior de tudo é
que nunca mais saiu da minha vida.
- Acredito que sim. Ele não te sai do
pensamento, por mais que o tempo passe.
Susana fechou os olhos e levou as mãos à
cara.
- Não é disso que estou a falar. Ele é o pai
do meu filho.
Natacha ergueu os olhos e olhou
fixamente a amiga, sem acreditar no que
estava a ouvir.
- Filho? Qual filho? Tu e ele... vocês têm
um filho?
Não foi preciso resposta. Um sinal bastou.
- Meu Deus! Como é que isso é possível?
Nunca me deste a entender tal coisa.
- Ele ficou com o pai.
- O quê? Espera lá... Tu não quiseste ficar
com ele?
- Não. Fui estúpida. Ele está a centenas de
quilómetros de mim. Agora arrependo-me. Na
altura, fiquei aliviada.
- Como é que foste capaz de «largar»
assim o teu filho?
- O meu pai convenceu-me.
Martim era mais um segredo que Susana
tinha aberto. O choque por parte da sua
melhor amiga não lhe era indiferente.
Porventura, teria reagido de outro modo se
tal lhe tivesse acontecido.
- Natacha, eu sei que cometi um dos
maiores erros da minha vida e aprendi isso ao
longo destes compridos três anos. Eu sinto-me
culpada por o meu filho não me conhecer.
Ele vai fazer três anos. Está a ficar um homem
crescido. – sorria, contrastando com o brilho
nos olhos.
- Mas eu não entendo como nunca o
quiseste ver. Ouve, tens 19 anos. Não és uma
criança. Eu não sou ninguém para te julgar,
mas o facto de nunca teres querido saber de
uma criança que veio de dentro de ti é
horrível, a meu ver. Sabes o que é uma
dádiva? Uma dádiva é um tesouro. A vida deu-ta
e tu agradeces-lhe assim? Dádivas não há
muitas... Era o teu filho, «Su».
- Era, não! É!
- Um filho de quem nunca quiseste saber.
Já reparaste no quão cruel isso é? Susana... vai
atrás do que é teu. Eu sei que nunca mais
queres ver o director da tua antiga escola à
frente, mas um filho sem mãe é um filho sem
chão. Ele vai cair e magoar-se. Ele vai ao
abismo!
- Pára! Pára! Não te consigo ouvir mais! Isto
já é suficientemente revoltante. Não me
deixes mais em baixo, por favor!
- Bom, o melhor é deixar-te sozinha. Pensa
no que te disse. Mais uma vez afirmo: a vida
não te dá segundas hipóteses se não
remediares a primeira que rejeitaste.
E por ali ficou aquela quente tarde. Por ali
ficou Susana, sem noção do que acabara de
fazer. Ela sabia que estava sozinha... mais uma
vez sozinha.
Tal como dentro do carro, deitou-se a
olhar um céu sem estrelas. Com as lágrimas a
molhar a viva e exuberante relva... ali
adormeceu.

continua…

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Parte 1 e Parte 2

Parte 3

2 comentários:

  1. Parabéns Samuel. A tua obra está a ser um verdadeiro sucesso!

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  2. Obrigado. Fico contente que assim seja. :-)

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