quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Brilho da Lágrima Parte 1 e 2 - Samuel Rocha

 

 

«A vida é o pânico num teatro sem chamas.»
Sartre

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Capítulo I


Quando o destino é rei num reinado sem
fim, o futuro resume-se à sua insignificância.
Susana sabia-o sem necessitar de explicação,
sem sequer precisar de fechar os olhos para o
tentar entender.
Depois de um longo dia em que o Sol não
parou de brilhar, o horizonte apenas realçava
os últimos raios que antecediam o luar de
uma noite nebulosa.
A campainha tocou uma última vez antes
do crepúsculo.
- Cíntia Félix?


- Quem é o senhor?
- Tiago Lopes da Polícia Judiciária. A
senhora Cíntia está?
- Está sim. Aguarde um momento.
- Muito obrigado.
Instalou-se um ruidoso silêncio. Apenas se
ouvia o vento que deixara cair a noite num
ápice.
Cíntia chegava agora à porta.
- Boa noite. Passa-se alguma coisa?
- Boa noite. É melhor improvisar, certo? –
sussurrava ele.
- Sim.
Susana sentava-se agora nas escadas,
encostada à parede, de forma a não ser
descoberta.
- Bom, infelizmente não tenho uma boa
notícia para si. Encontrámos o corpo do seu
marido a boiar no rio Vouga. É uma situação
invulgar, mas estamos a investigar as causas
do sucedido, e em breve, dar-lhe-emos mais
pormenores. Sinto muito. Os meus pêsames.
A porta fechou, quando os passos
começaram a fazer-se ouvir. Como a vinda
repentina da escuridão, Susana apareceu à
porta. O olhar pálido de Cíntia aliou-se ao
chão poeirento e sem sentido.
- O que é que se passa?
Nem uma palavra se escutou. Apenas os
olhares, invadidos por lágrimas mais fortes do
que a realidade, reflectiam o que mais
ninguém podia explicar. A tragédia falava mais
alto do que a singela voz de Susana.
Ambas as almas, ainda de pé, não
resistiram à força da tempestade de ventos,
correntes e espíritos que tal notícia
acarretara. Mais uma vez, o silêncio, sensível
ao desfecho do fatídico dia, imperou na
mansão onde apenas se ouvia o relógio que
espelhava o retrato intriguista de Nuno,
apesar da sua timidez evidente.
A vida transformou-se em nada, porque o
destino assim o quis.
A Quinta da Pedra, local onde a família
Félix se instalara no ano de 2004, era sem
dúvida alguma um lugar colorido e alegre
antes da morte de Nuno. A cor foi-se
desvanecendo com o passar do tempo. A Lua
assumiu o controlo das noites. Já o Sol...
desapareceu com o pai de Susana.
Os dias de consecutiva chuva após a
trágica notícia «afogaram» os sentimentos
que ainda se mantinham vivos.
- Ele disse-me «Amo-vos» quando me ligou.
Eu deveria ter adivinhado. Ele... não dizia coisas
destas.
- Pára de te culpar! O único culpado foi
quem o matou! – gritou a jovem, em tom de
revolta.
A revolta invadiu a mansão onde os três
haviam sido felizes. Felicidade era algo que já
lhes tinha sido tirado uma vez. «Porquê de
novo» era a dúvida que se impunha.
Os frios e silenciosos aguaceiros não
paravam. A compreensível tristeza insistia
também em não desaparecer. O cenário de
terror era a prova viva de que nem o dinheiro
consegue comprar um sorriso.
Antes de se mudarem, os Félix viviam em
Beja. Os cursos superiores dos pais sempre
deram a Susana tudo o que qualquer criança
deseja. Com o passar do tempo, a
personalidade desta foi-se moldando: de uma
criança ingénua e livre como a brisa, nasceu
alguém ciente do que é o Bem e o Mal. «O
passado muda-nos!». Ela sabia-o.
Aos dezasseis anos, a mudança para Aveiro
revelou-se fácil. Do seu rosto pálido, magro e
repleto de mágoa, surgiu uma face
revigorante e um coração pronto para
começar do zero. Tendo a certeza de que
jamais alguém pode esquecer o que viveu
anteriormente, Susana teve o seu momento
de glória quando Cíntia e Nuno aceitaram
mudar-se. Até então, o sofrimento foi
demasiado...

 

Capítulo 2


Como já ia sendo habitual, o mau tempo
não abandonava Aveiro. A cada dia que
passava, a intensidade dos ventos e da chuva
tornava-se tremenda. As poças iam ajudando
o negócio das botas de plástico. Já Cíntia e
Susana permitiam a presença de Nuno, ainda
que nenhuma delas a sentisse. Passavam os
dias em casa... sem palavras, esforço ou
compreensão.
Avistava-se o dia do funeral. Todos
ansiavam por esse momento, pelo último
momento. Contudo, as dúvidas de Susana em
relação a isso eram muitas.
- Como é que ficou tudo pronto a tempo,
se nem sequer saíste de casa?
Cíntia hesitou, mas logo respondeu
assertivamente.
- Hoje em dia, podemos fazer tudo pelo
telefone.
- Ai sim? E nem uma opinião me pediste?
Foi o pai, mãe. Foi o pai!
As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto
como uma fonte de água límpida e brilhante.
O Sol «ressuscitou» naquele preciso
momento. Foi como que um consolo. Foi um
sinal, um sinal de que a vida continua. Aveiro
brilhava de novo, ao contrário da mãe de
Susana.
De cara voltada para o chão, e com
palavras apagadas e sem entusiasmo, Cíntia
apenas cumpriu o que pensava ser o seu papel
de mãe:
- Ele já tinha tudo preparado.
- Desculpa?
- O teu pai já tinha organizado o funeral.
- Porque é que só me contas isso agora?
- Não sei. Eu estava e estou a sofrer tanto
ou mais do que tu. Nem me lembrei sequer.
- Mas sabia-lo antes de isto acontecer.
Porque raio é que ele fez isso? Já sabia que iria
morrer?
- Na altura, ele disse-me que se lembrou
disso e tratou logo do assunto. Eu não lhe dei
importância.
- Não faz sentido. Na passagem de ano, ele
disse que íamos fazer de tudo para que o ano
de 2007 corresse melhor do que todos os
outros. É impossível ele se ter suicidado. Não
tem lógica.
E não tinha. Tudo era um enigma. A vida é
um enigma até encontrarmos respostas, e era
disso mesmo que as duas precisavam, de
respostas.
Um dia antes do funeral de Nuno, com
Susana a seu lado, Cíntia finalmente recebeu
a bendita chamada da Judiciária. Desta volta, e
ao contrário de quem lhe deu a nefasta
notícia, era o agente André, um jovem
profissional há poucos meses no cargo da PJ,
que lhe telefonava.
Sendo um número desconhecido, Cíntia
hesitou em atender, mas o seu instinto foi
mais forte. Forte foi também a forma como
iniciou a conversa.
- Boa tarde. Sou o agente André da Polícia
Judiciária. Estou a falar com Cíntia Félix,
correcto?
- Diga-me que houve desenvolvimentos no
caso!
- Bom, há duas coisas que quero que saiba,
até para nos poder ajudar. Eu tenho plena
consciência que o que lhe vou dizer pode ser
duro, mas seja forte.
- Ouça, eu só quero saber o que realmente
se passou.
- Muito bem. Antes de mais, supomos que
Nuno não tenha estado muito tempo dentro
de água. Isto porque, num dos bolsos das
calças do seu marido, encontrámos um
bilhete onde estava escrito «Eu amo-te.
Resolve tudo... por favor!». O papel estava em
boas condições, o que nos leva a pensar que
não teve tempo de se desfazer na água.
Através dos documentos, conseguimos
verificar que a letra não é dele. Foi você
quem escreveu a mensagem?
Cíntia ficou estupefacta com tal
informação. Mal sabia ela o que estava para
vir.
Depois de pequenos segundos de espera,
respondeu friamente.
- Não.
- Mas conhece alguém que possa tê-la
escrito? O seu marido traía-a?
- Eu peço-lhe imensa desculpa, mas o
senhor começa a ferir o ponto essencial desta
conversa. Não sei quem escreveu tal
barbaridade!
- Entendido! – respondeu André, sem
fraquejar – Bom, a segunda informação que
queria dar-lhe era que o seu marido foi
alvejado na cabeça. Havia alguém que
quisesse fazer-lhe mal? De facto, não
encontrámos a arma na zona onde o corpo se
encontrava.
- Um tiro na cabeça? Como é que alguém
tem sequer a coragem de o fazer? Para além
disso, o Nuno era uma pessoa clara. Gostava
de ter tudo bem «arrumadinho» na cabeça
dele. Se havia um problema, ele tentava
resolvê-lo. Não tinha inimigos.
-Agradeço a sua disponibilidade. Vamos
continuar a analisar o caso. Quando tiver mais
alguma coisa a dizer-lhe, assim o farei.
Contudo, o resultado da autópsia deve
demorar algum tempo.
Deitada no sofá, Susana olhava o vazio,
um vazio obscuro, mas sem razão de o ser. As
duas conversaram e a preocupação de ambas
em relação às novidades era desconcertante.
No entanto, a filha de Nuno percebeu que,
porventura, o seu pai não se teria suicidado.
Chegara então o momento da despedida.
O funeral de Nuno estava marcado para as
catorze horas.
Ainda em casa, Cíntia não falava de outra
coisa, senão do tempo, que logo a seguir à
conversa com André, voltou a piorar.
- Esta chuva está a devastar-me. Não há
um dia em me sinta bem. Parece que a
melancolia fala mais alto.
Apesar das palavras da mãe, Susana estava
mais focada no pai. Por isso mesmo, a
conversa «fugiu» para outro patamar.
- Desde há três dias que não consigo
dormir só de pensar que o pai levou um tiro.
Não consigo compreender quem lhe queria
mal.
- Sinceramente, também não deixei de
pensar nisso, mas há que ir com calma. Agora
é o momento dele, apesar desta maldita
saraiva.
A chuva caía como se de uma cascata se
tratasse. O barulho que se fazia sentir era
ensurdecedor.
O preto era a cor do dia... Vestidas a
pretexto, mãe e filha saíram de casa por
volta das treze horas. O táxi chegara
segundos antes. Já no cemitério, algumas
pessoas iam fazendo fila de espera. Nuno era
um homem adorado pela sua calma e
sinceridade.
O verde vigoroso da erva contrastava com
o preto, também ele possante, da vestimenta
de todos os que iam assistir ao enterro.
De mãos dadas, puseram-se todos em
círculo. O caixão, ao centro, era alvo das
chicotadas das gotas que fortemente iam
caindo. Nuno descansava... ao silêncio da
multidão.
Cada um dos que ali estava sabia que a
vida é como a roda da sorte. Embora a nossa
vontade seja outra, a infelicidade bate-nos à
porta quando bem entende. É o destino. É a
vida. É a morte. Cada um deles, orando para
que o vento levasse em paz a alma de um pai,
de um marido e de um amigo, queria que tudo
tivesse sido diferente. As lágrimas significavam
isso mesmo, apesar de não se notarem no
meio de tantos chuviscos.
E foi assim que a terra foi posta sobre o
caixão. Foi assim que Susana imediatamente
percebeu que nunca mais veria o pai, que
nunca mais estaria com ele.

 

continua…

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