quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Brilho da Lágrima Parte 6 – Samuel Rocha

 

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Miguel não tinha percebido a perplexidade
de Susana. Levantou-se e foi ter com Petra, a
sua mãe e a mãe de Salvador.
Tudo era uma imensidade de incerteza na
cabeça da filha de Nuno. Para ela, o rapaz que
conhecera no dia do funeral do pai era alguém
que lhe tinha ficado na memória, por boas
razões. Salvador era um ícone para ela.
Apesar de pouco terem falado, o seu olhar
solene e a simpatia que irradiava, eram fontes
de energia. Ela servia-se dessas fontes.
Mal chegou a casa, Susana enviou uma
mensagem a Salvador, dizendo apenas que
queria falar com ele.


Encontraram-se no mesmo parque onde
ela tinha estado horas antes. Foi lá que não
conseguiu dirigir-lhe a palavra durante uns
aborrecedores dez minutos. Ele aproveitava a
noite. O dia havia sido duro.
- Tenho de contar-te uma coisa. –
começara ela.
- Conta.
A descontracção era muita.
- Hoje de manhã, vim arejar as ideias.
Estava decidida a esquecer certas coisas.
- Eu não tive tanta sorte. Fui trabalhar bem
cedo.
Susana olhou-o fixamente.
- Não te disse naquele dia, mas eu trabalho
durante o Verão. – acrescentou.
- Ainda bem que o fazes. Assim, podes
divertir-te no Verão e comprares o que
quiseres sem pedires nada à tua mãe.
Ela tentava ir por um caminho arriscado.
Ela queria que Salvador dissesse a verdade
para não ter de lhe contar o que aconteceu.
Contudo, saiu-lhe o tiro pela culatra.
- O que é que tinhas para me contar?
- Passou-se o seguinte: quando cheguei ao
parque, sentei-me ao lado daquele banco. –
apontava, sem olhar para ele – De repente,
ouvi uma mãe e um filho. Ele estava a pedirlhe
alguma coisa para comer.
Susana parava agora para ver a reacção de
Salvador. Nada aconteceu.
- E então? – perguntou ele.
- Bom, já vi que não me queres contar mais
nada sobre ti.
- Mas que mais queres saber?
- Sabes quem eram as pessoas que
estavam sentadas no banco? A tua mãe e o
teu irmão!
- O quê? É impossível.
- Eu vi a fotografia que me mostraste no
cemitério. Conheci o teu irmão quando olhei
para ele.
O tempo parou para o «perfeito» filho de
Petra. Parara também ele, quando ouvira tal
coisa. Fechou os olhos e levou as mãos à cara.
- Não tens de ter vergonha, Salvador. Há
pessoas que têm tudo e outras que não têm
tanta sorte na vida. Acredita no que te digo: o
dinheiro não compra a felicidade. Olha para
mim! Eu sempre tive tudo o que quis. Mesmo
com dinheiro, fui violada. Mesmo com
dinheiro, desprezaram-me na escola. Não te
deixes ficar no fundo. Sabes que mais?! O
fundo é lá em baixo, mas tu podes escalar as
paredes que te rodeiam. Custa, mas quando
chegares cá a cima e respirares este ar puro...
nem imaginas como te vais sentir! Eu já estive
lá no fundo. Não foi por isso que fiquei lá para
sempre. Não é um dado adquirido sermos
pobres toda a vida. És rico por dentro e isso é
o mais importante.
Ele tirou um lenço do bolso e limpou a
cara.
- Tens razão. Eu não posso estar assim. Eu
luto todos os dias da minha vida para não
ouvir o meu irmão dizer que tem fome e frio.
- Achas que podemos ir tomar um café?
Vais gostar de desabafar.
- Sim. Aliás, tenho muito para te contar.
E lá foram os dois tomar café, não muito
longe do parque. Susana apreciava a noite
tanto quanto Salvador o fazia quando foi ter
com ela. Agora, nem tanto.
Depois do café tomado, decidiram voltar
para o parque e deitar-se na relva. As estrelas
não saíam do céu. Porquê escapar àquele
ambiente mágico?!
Mal se deitaram, Susana não hesitou em
satisfazer a sua dúvida.
- Há uma coisa que me tem constrangido
em relação a ti.
Salvador interrompeu-a como uma estrela
cadente que voa sem bilhete de viagem.
- Eu sei o que me queres perguntar. Tu
queres saber porque razão é que te escondi
tudo isto, não é?
- Não. Bom, vou ser directa. No dia em que
nos conhecemos, no cemitério, disseste-me
que estavas lá para visitar um familiar. Eu não
acreditei em ti, apesar de te ter achado
alguém humilde e sincero. Não me perguntes
porque não acreditei. Simplesmente não
aconteceu. O que estavas lá a fazer?
A pergunta foi como se o céu se cobrisse
de nuvens. A resposta tardou em chegar.
Nunca ninguém tinha deixado Salvador num
estado de ansiedade e de medo num tão
curto espaço de tempo.
Sentou-se e pediu à agora sua amiga para
se sentar também.
- Eu tenho de ser sincero contigo. É
verdade, eu menti. Não o quis fazer, mas foi
mais forte.
- Qual é a verdade, então?
- A verdade é que o meu padrasto morreu
há pouco tempo e eu tinha ido ao cemitério
para o seu funeral.
- Mas isso é algo natural. Porque é que mo
escondeste?
- Eu já te conhecia antes de nos termos
visto no cemitério. Quando te dei o guardachuva,
não tinha reparado quem tu eras, mas
quando me disseste que estavas lá por causa
do teu pai, Nuno, aí percebi que já te tinha
visto antes.
- Já me conhecias? Como é que isso é
possível, se nunca nos tínhamos falado?
- Susana, não te posso continuar a
esconder isto. Tens de saber a verdade.
- Estás a baralhar-me.
- O teu pai era o meu padrasto. Ele tinha
um caso com a minha mãe. Pronto, é isso.
Susana ficou perplexa. O seu olhar dirigiase
agora para Salvador. Era um olhar de
suspensão, de incredulidade.
- O que é que me estás a dizer? O meu pai
traía a minha mãe? É isso que estás a dizer? –
perguntava, agora mais irritada.
- Não fales assim. A culpa não é minha. A
culpa foi dele. A minha mãe bem lhe pediu
para escolher entre nós e vocês. Ele nunca se
decidiu. Melhor ainda, ele decidiu matar-se.
Eram coisas a mais para Susana. Não só
descobrira que Nuno, o seu pai, não era a
pessoa ideal que pensava ser, como também
que a carta que encontraram no seu bolso das
calças tinha sido escrita pela mãe de
Salvador.
- Agora tudo faz sentido. O meu pai sabia
que nunca iria conseguir decidir-se em relação
à escolha entre nós e vocês. Ele matou-se!
Ele matou-se, Salvador!
- O que mais me faz sentir culpado é que
agora, vendo o que ele dizia e a forma como
agia, ele sabia que ia morrer. Ele disse-nos para
não aparecermos no seu funeral.
- O que estavas lá a fazer, então?
- Eu quis ir. Quis conhecer quem fazia parte
da sua segunda vida.
- Ele também disse à minha mãe que ia
tratar do funeral.
- Ela não achou estranho?
- Ela agiu da mesma forma que vocês: não
deu importância.
Agora era o momento em que todos
percebiam que as aparências iludem. Nuno
tinha duas vidas. Ele tinha duas formas de
estar: coerente com os que o rodeavam e
desintegrado quando vivia uma vida «externa»
e obscura.

continua…

Leia ou Releia

Parte 1 e Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

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