quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Brilho da Lágrima Parte 7 – Samuel Rocha

 

7COVER - O Brilho da Lágrima


Já ninguém queria saber o que a Judiciária
tinha para dizer. Nuno tinha-se suicidado. Era
ponto assente.
Cíntia aparentava estar devastada com o
que soubera. Como é que durante tantos anos
de casamento, esta história nunca tinha sido
descoberta? Ela sabia que a verdade é sempre
difícil de revelar. Mentir custa muito menos e
é muito mais prático. E a mentira que voa de
asas abertas por esse mundo fora, essa só é
descoberta quando a verdade se sobrepõe.


Não há sinais; não há nada. Nuno nunca deixou
sinais de que a sua mente estava oprimida
como uma esponja serrada entre duas mãos.
Ninguém fazia ideia que aquele homem,
acarinhado por todos, era uma mentira pura e
crua.
Agosto estava a acabar. Era o ano da ida
para a Universidade. Não era isso que Susana
queria. Aliás, a dada altura, nem mesmo ela
sabia o que pretendia fazer. As verdades
tinham parado uma vida que se tinha
recomposto depois de uma tragédia de
infância. Por enquanto, o essencial era
desabafar. Isso ajudava-a. Não com Natacha.
Essa já tinha partido à procura de umas férias.
Susana sabia-o através das redes sociais. A
relação delas não mais foi a mesma desde a
última vez em que tinham estado juntas.
Era nestas alturas que Susana pegava num
papel e numa caneta... e imaginava. Nada mais
do que a imaginação.
«Não sei se o futuro está ao meu alcance.
Penso apenas que o presente sou eu, aqui,
agora. Daqui a pouco, posso morrer; posso
fechar os olhos e flutuar... flutuar. Eu queria
fechar os olhos. Queria pôr um ponto em
todas as frases mal feitas ou sem sentido.
Queria empurrar o passado para trás de mim e
puxar o futuro, um futuro com futuro...
apenas isso.
Agora quero o meu filho nos meus braços.
Quero baloiçá-lo e baloiçar a mente. Gostava
de pegar nele com toda a força e dizer-lhe:
‘Estás aqui. Não mais te vou largar!’. Sim... isso
é o meu presente. Eu quero o meu filho.»
A folha de papel, como habitualmente,
era agora molhada pelas lágrimas que saíam
dos olhos cintilantes de Susana. Ela estava
certa em relação a algo: nada ia ser apagado.
Ela queria mesmo ter o filho nos braços,
porque o arrependimento, esse, ninguém o
pode apagar.
- Mãe, amanhã vou a Beja ver o Martim.
- Estás louca?! Não o quiseste ver durante
quase três anos. Tens noção disso, não tens?
- Tenho, mas não aguento o facto de estar
sempre a arrepender-me do que fiz. Eu sei
onde ele mora. Eu sei que ele é meu filho. Eu
sei que quero vê-lo!
- Vai. Não te impeço de o fazeres. Vamos
de carro?
- Eu preferia ir sozinha, se não te
importares.
- Mas vais como?
- De autocarro, muito provavelmente.
No dia seguinte, Susana levantou-se muito
cedo e seguiu para Beja. Estava tão ansiosa
que o tempo demorou séculos a passar. Ela ia
viver um dos momentos mais felizes da sua
vida, um reencontro entre dois olhares, o dela
e o de Martim, aquele bebé que ainda
mantinha na memória.
Só ao início da tarde é que chegou à
escola de onde tinha saído quase três anos
antes. A partir de lá, seguiu o caminho para a
casa do antigo director da mesma escola.
Quando lá chegou, tocou à campainha, já com
a mão trémula. Apareceu uma senhora à
porta, uma senhora muito simples, com um
avental. Estava toda vestida de preto.
- Diga, menina.
- Bom dia! Gostava de saber se esta é a
casa do director da escola ali de cima.
- O senhor Raimundo já não dirige a escola.
Mas sim, esta é a sua casa. Qual é o assunto?
- Eu queria falar com ele pessoalmente.
A senhora baixou a cabeça e respondeu.
- Ele não está nada bem de saúde.
Foi aí que desceu as escadas e veio até ao
portão, onde estava Susana.
- A menina foi aluna dele?
- Sim, fui. Nós falamos muitas vezes, mas
nunca soube que ele estava assim. – tentava
persuadir a empregada, de modo a conseguir
obter mais informações.
- Bom, eu vou contar-lhe o que aconteceu.
O senhor Raimundo foi acusado de violação
há um ano e meio, sensivelmente.
- Desculpe?
- Sim. Alguém fez queixa dele e a verdade
é que ficou em muito «maus lençóis».
Susana estava perplexa. O que seria de
Martim?
- Você sabe se ele tinha uma criança ao
encargo dele?
- Sim. Eu comecei a trabalhar aqui há dois
anos. Quando eu vi que ele tinha um bebé
para tratar, fiquei admirada, porque ele não
era novo. Mas adiante. Como lhe estava a
dizer, ele foi a tribunal por causa da violação.
Não me pergunte como, mas ele conseguiu
sair ileso. O menino ficou com a esposa dele e
ele ficou aqui comigo. O pior de tudo isto é
que há seis meses, o menino adoeceu.
- Você está a falar do Martim?
- Exactamente. Era mesmo esse o nome!
- Meu Deus! Onde é que posso ir vê-lo?
- Bom... só mesmo no cemitério. Ele
faleceu há pouco tempo com leucemia. De
repente, começou a ficar muito magro com os
tratamentos. Já nem tinha vontade de falar
ou de sorrir. E só tinha dois aninhos. Era uma
jóia de menino. O senhor Raimundo acariciavao
muito... Ele tinha... – parou repentinamente –
Porque é que está a chorar?
- Era o meu filho! – gritou Susana, como
que a pedir a Deus que ele voltasse.
- A menina deve estar a fazer confusão.
Era o filho do senhor Raimundo.
- Ouça, ele violou-me e tive um filho. Está
a perceber? Eu quero-o de volta! Eu quero-o...
- Ó meu Deus! Você era... Já nem estou em
mim. Venha comigo. Entre.
Susana entrava agora na casa onde o seu
tesouro tinha vivido.
Martim tinha morrido, e a forma como o
soube foi, no mínimo, bombástica. O coração
caíra-lhe ao chão. Ela já não sentia a alma, a
alma que a tinha mantido de pé quando o pai
faleceu. Desta vez, não era o pai. Era a criança
que pôs ao mundo, a criança que tinha
abandonado por pensar que iria ser mais um
problema.
Susana também não estava viva. Era como
se se sentisse noutro mundo. A reacção à
notícia foi um misto de inutilidade e de
amargura. A vida não era nada, naquele
momento.

continua…

Leia ou Releia

Parte 1 e Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

Parte 6

Sem comentários:

Enviar um comentário